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Carolina Maria de Jesus |
Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP
Há gente que gosta de ler biografias, aliás há pessoas que exageram, só gostam delas. A escritora brasileira (naif) Maria Carolina de Jesus (1914-1977) desde criança gostava de ler dicionário. Trata-se de um gosto esquisito, mas instrutivo, era o único livro que tinha.
Ela nasceu em Sacramento, Minas Gerais. Nome bem católico. Hoje a escritora é o orgulho da cidade, mas no seu tempo de anonimato, foi a vergonha, chegou a ser expulsa.
Carolina de Jesus sentou-se na soleira da porta da sua casa em Sacramento com o dicionário no colo e foi lendo. De repente, fora abordada por soldados e presa porque estava lendo. Foi acusada de estar lendo o livro de São Cipriano. Ela dizia que não, que era um dicionário, mas os soldados não sabiam ler, ela não pode provar que dizia a verdade.
-Que livro é este, o do São Cipriano, que não pode ser lido por todos? - pergunta o leitor.
Trata-se de ocultismo, bruxaria, que facilmente foi ligado no Brasil à cultura africana. Desde 1937, por iniciativa do constituinte Jorge Amado, há liberdade religiosa também para os negros, mas esse incidente com Carolina de Jesus aconteceu bem antes.
Foi levada para a cadeia pública aos 12 anos. Apanhou porque estava lendo. Sua mãe foi a seu socorro, mas também ficou presa. Apanhou também. Sacramento virou um inferno. Negro lendo, negro era gente do trabalho, pessoas para serem espancadas. A princesa Isabel já assinara a libertação há alguns anos, mas foi apenas um ato burocrático.
A menina, em torno de 12 anos, rebelou-se e foi para São Paulo, à procura da Estação da Luz sem a mãe, que não quis participar da aventura. Dizem que Carolina de Jesus saiu a pé, chegou a São Paulo caminhando. Criolo ainda não cantava "não existe amor em SP"
Veio atrás de seus direitos humanos, por ser pobre e preta também tem direito à literatura. Foi morar na Favela Canindé, capital paulista. Virou escritora, transformou-se na vedete da favela.
Num país em que uma menina negra apanhou porque estava lendo, isso há 100 anos, até que evoluímos, pois o combate ao racismo chegou aos campos de futebol.
Carolina de Jesus era vocacionada para a literatura, queria exercer esse direito. Lutou, escreveu "Quarto de despejo - diário de uma favelada". Enquanto foi cordata, recebeu o prestígio da grã-finagem; quando passou a falar a verdade com todas letras, voltou à marginalidade. Se fosse viva seria uma fanqueira.