AGENDA CULTURAL

27.2.11

Aos 73 anos, morre o escritor gaúcho Moacyr Scliar

estadão.com.br
O escritor Moacyr Scliar que havia sofrido um acidente vascular cerebral isquêmico (AVC) e estava internado no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre desde 17 de janeiro, faleceu à 1h deste domingo, 27 de fevereiro. Segundo boletim médico, Sclyar, morreu de falência múltipla de órgãos.
Tasso Marcelo/AE
Tasso Marcelo/AE
O escritor gaúcho, Moacyr Scliar
Internado desde 11 de janeiro para uma cirurgia de extração de tumores no intestino, Scliar sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico no dia 16 de janeiro e foi encaminhado à Unidade de Tratamento Intensivo. No dia seguinte, sofreu uma cirurgia para retirada de coágulo decorrente do AVC, passando a ser mantido com um mínimo de sedação necessária. O escritor passava pela retirada gradual da sedação quando, no dia 9 de fevereiro, apresentou um quadro de infecção respiratória, voltando então a ser sedado e a respirar por aparelhos.
O velório acontece neste domingo, a partir das 14h, no salão Júlio de Castilhos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
O sepultamento será na segunda-feira, 28, em local e horário ainda indefinidos. Esta cerimônia será apenas para familiares e amigos.


Leia um conto de Moacyr Scliar

Pausa


Moacyr Scliar


     As sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
     – Vais sair de novo, Samuel?
Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
     – Todos os domingos tu sais cedo – observou a mulher com azedume na voz.
     – Temos muito trabalho no escritório – disse o marido, secamente.
     Ela olhou os sanduíches:
     – Por que não vens almoçar?
     – Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.
     A mulher coçava a axila esquerda.
  Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
     – Volto de noite.
     As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
      Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo.
   Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé.
      – Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
      – Estou com pressa, seu Raul! – atalhou Samuel.
      – Está bem, não vou atrapalhar. 0 de sempre. – Estendeu a chave.
      Samuel subiu quatro lances de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade:
      – Aqui, meu bem! – uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
      Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador
de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.
      Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches.
Limpou os dedos no papel de embruIho, deitou-se e fechou os olhos.
      Dormir.
      Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.
      Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido.
      Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. As duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.
     Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.
     Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
     – Já vai, seu Isidoro?
     – Já – disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.
     – Até domingo que vem, seu Isidoro – disse o gerente.
     – Não sei se virei – respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
     – O senhor diz isto, mas volta sempre – observou o homem, rindo. Samuel saiu.
     Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Par        a casa
         Moacyr Scliar. In Alfredo Bosi. O Conto Brasileiro Contemporâneo 

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